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As batalhas e o reconhecimento da MINHA Consciência Negra

O Governador Tarcísio de Freitas sancionou em 12 de setembro de 2023 a Lei Estadual 17.746 declarando o Dia Estadual da Consciência Negra em 20…

Por Flavia Oliveira

O Governador Tarcísio de Freitas sancionou em 12 de setembro de 2023 a Lei Estadual 17.746 declarando o Dia Estadual da Consciência Negra em 20 de novembro. No âmbito nacional, a instituição do Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra foi através da Lei Federal 12.519 de 10 de novembro de 2011, ocorre que a data não foi tratada como feriado, por isso a necessidade de legislação estadual.

O Dia da Consciência Negra marca a data do falecimento do líder negro Zumbi dos Palmares, morto em 20 de novembro de 1.695, um dos maiores líderes do Quilombo dos Palmares que ficou conhecimento por sua liderança a resistência do quilombo contra os ataques portugueses.

Zumbi dos Palmares é um dos símbolos de resistência e luta dos negros contra sua escravização. O Quilombo dos Palmares estava localizado na região da Serra da Barriga, vinculada à capitania de Pernambuco.

Foram mais de 300 anos de escravidão no Brasil, sendo que o marco de oficialização do fim da escravidão conta com apenas 135 anos com a assinatura da Lei Áurea em 13 de maio de 1.888 sem que houvesse qualquer processo de inserção dos ex-escravos na sociedade, gerando um cenário cruel de desigualdades sociais cujas cicatrizes temos até os dias atuais.

Dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) através da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua, publicada em 2022 denota que 56% da população brasileira se autodeclaram pretas e pardas, ou seja, a população negra é o maior contingente, o que não se reflete em representatividade nos mais diversos espaços da sociedade.

Nesse sentido, concordo com o comentário de Regina Lúcia, do Movimento Negro Unificado (MNU) disponível no artigo de Wesley Lima na Biblioteca da Universidade Federal da Bahia de que “é necessário que a população brasileira se aposse de sua negritute” […]. Precisamos colocar a história no seu devido lugar”,  

E falando nos dias atuais, peço licença para compartilhar o meu processo de Consciência Negra.

Nasci em Montes Claros, uma cidade localizada no norte de Minas Gerais, filha de uma doméstica parda e um carreteiro negro retinto (que nunca conseguiu se estabelecer por ser alcoolista). Tenho 46 anos e um irmão com diferença de 05 anos de idade.

Quando eu tinha 09 anos, minha mãe que já não suportava os desafios de conviver com um marido alcoolista se separou e na sequência mudou-se para o Litoral Norte de São Paulo, São Sebastião, recomeçando uma nova vida.

Quanto a “Consciência Negra” não havia nenhuma conversa, pois a preocupação dessa fase era a sobrevivência, no meu olhar de criança não tinha uma percepção clara de que eu era da raça negra e não sentia nenhum tratamento diferenciado, brincava na rua, quando possível com outras crianças, mas a pauta que dominava era garantir a sobrevivência, então me limitava a não dar mais trabalho para a minha mãe, além do que ela já tinha com meu pai.

Nesse período com relação a identidade, a única coisa que se discutia era a dificuldade de cuidar dos cabelos crespos de uma criança negra, razão pela qual todas as mulheres da família alisavam os cabelos. Então passei a infância com cabelos bem curtinhos, tipo “Maria João” expressão muito utilizada para resumir o corte.

Na adolescência, comecei a sentir os primeiros sinais de que havia algum tratamento diferenciado entre as pessoas e que eu não fazia parte do time que recebia os melhores tratamentos.

Comecei a trabalhar com 12 anos, já fazia pequenos bicos, como olhar crianças, resolver pequenas coisas para os adultos, como ir à mercearia comprar alguns itens, sempre tinha um troquinho no bolso, então nas primeiras oportunidades de ir a algumas lojas, notava que os seguranças ficavam o tempo todo atrás de mim, até criei uma brincadeira com os amigos de ficar circulado o tempo inteiro na loja e depois sair sem comprar nada, de propósito, mas sinceramente, não relacionava que poderia ter alguma coisa a ver com preconceito, pois o processo de branqueamento presente nas instituições escolares e nas relações sociais era (como é atualmente), por vezes sútil e por vezes, velado.

Como o bairro que cresci faz divisa com o município de Caraguatatuba, acabei estudando na EEPG Ver. Benedito Paes Sobrinho, bairro do Perequê-Mirim, apelidada à época de “Carandiru” (1), imagina os desafios.

Já na adolescência presenciei a violência urbana e o racismo de modo mais acentuado, em diversas ocasiões, como nas abordagens policiais, em diversas dicas que eram compartilhadas entre nós como não andar de boné, se avistar uma viatura não correr, como os meninos precisam se comportar em caso de revista policial, entre outras dicas de sobrevivência, entendi também que na vida tinha mais oportunidades para aqueles que não eram negros e periféricos, padrão que perdura até os dias atuais.

 Então muito inspirada na música “A Vida é Desafio” dos Racionais MC’s, que diz que “é necessário acreditar que o sonho é possível, que o céu é o limite e você é imbatível”, desenvolvi uma metodologia pessoal para lidar com os desafios dessa fase, a agressividade como uma estratégia de defesa. Resolvia tudo na discussão, briga e no tapa, literalmente no tapa. Essa época eu já tinha uma turma de amigos, e eram muito comuns as brigas na saída da Escola.

Saindo da adolescência percebi que no tapa eu não ia durar muito, e que precisava estudar, mas ao mesmo tempo, quando eu ouvia falar na possibilidade de fazer uma faculdade, parecia algo muito distante da minha realidade, mas vinha uma estrofe da música dos Racionais MC’s em minha cabeça: “É isso aí, você não pode parar, esperar o tempo ruim vir te abraçar, acreditar que sonhar sempre é preciso, é o que mantém os irmãos vivos”.

A minha mãe sempre foi um exemplo de garra e determinação, mas infelizmente com baixa escolaridade e com 02 filhos para criar, fazia o que podia.

Consegui uma oportunidade de trabalho que me rendia metade do custo do curso de nível superior de administração de empresas que eu cursava em uma universidade particular em que eu viajava diariamente quase 150 km pelo período de 05 anos em um ônibus fretado pelo município. De acordo em acordo financeiro, me formei. Ufaaaaaaaaa!!!!

Na vida adulta algumas oportunidades foram se abrindo e outros desafios foram chegando, passei por várias situações de preconceito, mas sempre adotei uma postura equivocada de neutralizar a situação, não dar importância, não querer discutir, superar, levar no bom humor, acreditava que se eu ficasse abordando muito esse assunto poderia parecer “mi, mi, mi”.

Passei e ainda passo, por diversas situações que são tão comuns aos negros, como ser confundida o tempo inteiro com a responsável pela faxina; a pessoa que ia servir o cafezinho; ser perseguida no supermercado por acreditarem que você pode roubar; não encontrar uma balconista para me atender em lojas; ser taxada de “nariz em pé” e “metida” ao expor uma opinião; ser questionado quem é o diretor/chefe, quando na verdade essa pessoa é você, mas na expectativa da sociedade, ainda pautada nos princípios da “boa aparência”, e da pele branca sendo privilegiada em detrimento de outros tons de pele, você não ocuparia esse espaço; é não ser cumprimentado como o seu colega branco, até que saibam o seu cargo; é ficar sabendo de comentários assim “não fui com a cara dessa moça”, dentre tantas outras atitudes de uma sociedade preconceituosa.

O preconceito em muitos casos são atitudes muito veladas outras vezes escancaradas.

Conhece a expressão “voto de confiança”? Pois é infelizmente nascer negro é receber um “voto de desconfiança”, é ter que se provar capaz o tempo inteiro, é não ter o direito de errar, é ter que brigar por espaços de protagonismos, enfim não é uma tarefa fácil, muitos ficam pelo caminho, desistem.

E agora já na metade da vida adulta, depois de tantas experiências profissionais, pós-graduação, mais uma graduação, dessa vez em direito, como estão as coisas? Do mesmo jeito, continuo passando por situações preconceituosas, mas agora posso afirmar estou evoluindo e tomando posse da minha negritude.

Nossa história foi marcada por um processo de escravidão que perdurou três séculos, trazendo cicatrizes profundas para a população negra, reforçando a necessidade de discussões que ampliem a consciência de brancos e negros para lutarem em busca da redução de desigualdades, combate ao racismo e ampliação das oportunidades para a população negra como medida de reparação. 

Fonte:

https://www.ufrb.edu.br/bibliotecacetens/noticias/189-novembro-negro

https://brasilescola.uol.com.br/biografia/zumbi.htm

https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12519.htm

Nota:

  • EEPG Ver. Benedito Paes Sobrinho, bairro do Perequê-Mirim, não carrega mais o apelido pejorativo de “Carandiru” que era em alusão a penitenciária situada na zona norte de São Paulo que teve seu processo de desativação em 2002.  Atualmente é apelidada carinhosamente de “Ditão” A Escola contou com um projeto pedagógico chamado “Formando para o Sucesso” que consistia em uma semana de palestras a serem realizadas por ex-alunos em suas mais variadas profissões com o objetivo de inspirar os alunos a realizarem os seus sonhos através do trabalho e estudo. 
Flavia Oliveira

Com mais de 20 anos de experiência entre administração pública e de empresas, a advogada Flávia Oliveira reúne em sua coluna opiniões sobre acontecimentos legais e dicas jurídicas, tudo isso com entusiasmo, a sua principal característica.

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