“Se eu morrer, quem cuida?”: conheça relatos reais de mães sobrecarregadas pela rotina do autismo
Encontro promovido pelo Portal Aqui Vale reuniu mães e especialistas em São José dos Campos para discutir os desafios cotidianos da maternidade atípica
Na noite do dia 16 de abril, o Portal Aqui Vale promoveu o encontro “Desafios Reais da Maternidade TEA”, uma roda de conversa que reuniu doze mães de pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA) e três especialistas da área. O evento foi realizado em São José dos Campos e teve como objetivo principal oferecer um espaço seguro e acolhedor onde as participantes pudessem compartilhar os desafios diários na criação de pessoas com autismo.
Com mediação do Portal, o grupo discutiu questões delicadas como comportamento de fuga, rotina exaustiva, falta de acesso a direitos básicos e a ausência de estrutura pública para o acolhimento da pessoa com autismo e de suas famílias.
Exaustão, solidão e sobrecarga
O cansaço foi um dos sentimentos mais presentes nas falas das mães. Muitas relataram viver em estado de alerta constante, sem conseguir descansar nem por alguns minutos. “Eu tô no banheiro, ela tá na porta: ‘Mãe, não fecha a porta!’”, contou Tatiana, com a voz embargada.
A psiquiatra e educadora Tereza Oliveira reforçou que, além da maternidade, essas mulheres são obrigadas a assumir múltiplos papeis. “A mãe não é só mãe. Ela vai no Procon, junta papelada, busca laudo. Se não correr atrás, o sistema engole.”
Outro ponto sensível foi a invisibilidade dessas mães nos atendimentos de saúde. “Você vai no consultório, o médico não olha na sua cara. A gente tá lá, cansada, chorando, e ninguém vê. A gente também precisa de ajuda”, disse uma participante.
Em meio à sobrecarga, muitas sentem culpa por desejarem uma pausa. “Voltei a trabalhar por algumas horas e ouvi da terapeuta: ‘você vai ter que parar’. Era o único respiro que eu tinha. Mas tive que abrir mão da minha paz para salvar minha filha”, contou Tatiana, que precisou abandonar o emprego após a filha entrar em regressão.
Comportamento de fuga: risco constante
Um dos trechos mais fortes do encontro foi o debate sobre o comportamento de fuga. O tema foi introduzido em memória de Samuel, menino autista severo que fugiu de casa em março, em São José dos Campos, e foi encontrado sem vida dias depois.
A médica Camila Kallaur alertou: “O comportamento de fuga é muito mais comum do que se imagina. Às vezes é impulsivo, às vezes é uma fuga sensorial. E, infelizmente, ainda falta preparo nas escolas, nos espaços públicos… falta capacitação para lidar com isso.”
Outras mães relataram casos reais. “Minha filha fugiu de casa e foi parar na avenida. Uma mulher que nunca vimos segurou ela. Se não fosse essa pessoa, talvez eu nunca mais visse minha filha”, contou Tatiana.
Em outro relato, uma mãe descreveu como o filho saiu da escola sem que ninguém percebesse. “Quando chegamos, ele estava na esquina, olhando os carros. Se tivesse atravessado, poderia ter sido fatal.”
A advogada Flávia Fidalgo foi direta: “A fuga precisa ser tratada como uma questão de segurança pública. O Estado ainda não entendeu isso.”
Urgência por centros de convivência e acolhimento
Entre os pontos mais debatidos esteve a necessidade de criar centros de convivência funcionais, com foco no desenvolvimento da autonomia, segurança e socialização da pessoa autista. “O que mais arde no meu coração é um lugar onde minha filha entre às 8h e saia às 17h. Que ela aprenda a cozinhar, a lavar roupa, que ela tenha amigos, que ela se sinta parte de alguma coisa. Porque quando eu morrer, eu quero saber que ela não vai ser um peso para ninguém”, declarou Tatiana, emocionando o grupo.
A ideia foi reforçada por outras mães e especialistas, que defendem que os espaços voltados à inclusão precisam ir além do modelo terapêutico tradicional. “Essas famílias precisam de apoio real. A clínica é importante, mas não é suficiente. Elas querem vida, pertencimento, rotina, convivência”, concluiu uma das especialistas.
Próximos passos
O evento aconteceu em homenagem a Samuel, e a partir dele o Portal Aqui Vale está lançando uma série de conteúdos com foco em conscientização e mobilização. A iniciativa busca jogar luz sobre a realidade das famílias atípicas e fomentar propostas concretas que ampliem a rede de apoio e garantam dignidade a quem cuida e a quem precisa ser cuidado.
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