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Aqui Vale entrevista autor de Guaratinguetá que escreveu livro sobre queimadas na Chapada Diamantina

Pablo Casella morou por 20 anos na Bahia e se inspirou em brigadistas voluntários para escrever romance

Por Portal Aqui Vale

Autor de Guaratinguetá lança livro sobre queimadas na Chapa Diamantina, na Bahia. Pablo L. C. Casella nasceu em 1978 e é autor do livro “Contra Fogo”, publicado pela editora Todavia.

Pablo é formado pela USP (Universidade de São Paulo) e atua como analista ambiental no Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). De 2002 a 2022, fez parte da equipe gestora do Parque Nacional da Chapada Diamantina, na Bahia. “Contra Fogo” é o seu romance de estreia. Confira na íntegra a entrevista que o Aqui Vale realizou com o autor:

Aqui Vale: Como foi o processo de escrita do livro? Durou quanto tempo para a criação da história? Ela poderia ser real?

Pablo Casella: Foram 18 meses de escrita mais intensiva, mas da primeira versão ao livro publicado foram 40 meses de lapidação.

Percebi, posteriormente, que escrever esse livro foi um feito que serviu a alguns propósitos, a algumas agendas íntimas, parte delas nem sequer sabidas por mim à época. Suspeito, inclusive, que pode até haver alguma agenda que eu ainda não identifiquei. O livro nasceu para contar, para um público maior, a existência dessas pessoas, os brigadistas voluntários de combate a incêndios florestais, mostrar que existe no país tal fenômeno, tão incrível, quanto pouquíssimo conhecido. O livro também foi fruto de um ímpeto muito antigo, o de realizar alguma manifestação artística, sob pena de me sentir incompleto enquanto humano se não me dedicasse a alguma forma de arte. Depois do livro pronto, ainda antes do lançamento, percebi o que já poderia ter sido percebido antes, com obviedade, que esse livro também estava funcionando como minha despedida da Chapada Diamantina, após os incríveis vinte anos nos quais tive o privilégio de morar e me dedicar a ela.

Ultimamente, com algumas recepções que tenho percebido do livro, começo a suspeitar de uma quarta força, sutil e mágica, uma artimanha de Pachamama para que, mesmo tendo pensado que estava a fazer literatura sobre aspectos da alma humana, eu também esteja a serviço dela, uma demanda compreensível e justa nesses tristes e preocupantes tempos em que vivemos.

O livro traz uma história ficcional, personagens e trama são uma ficção, mas se desenvolvem em um cenário documental. A Chapada, seus lugares, seu povo e vários aspectos da cultura do lugar estão representados ali, como um tributo a essa região, cuja cultura, como sempre acontece, está se alterando. Queria registrar alguns aspectos culturais que talvez estejam a caminho da extinção.

Aqui Vale: Pablo, o livro “Contra Fogo” foi escrito em linguagem marcada pela oralidade, por que foi escolhida esse tipo de escrita e teve a inspiração em algum autor?

Pablo Casella: Depois que a história se manifestou para mim, em mim, dizendo que deveria ser contada, a atividade mais laboriosa foi encontrar a linguagem que essa história pedia. Quis praticar uma literatura que concilia a trama e a linguagem como elementos imbricados, que fazem uma ciranda, um yin e yang permanente entre a história que se conta com a maneira como se conta. A escolha por esse registro das oralidades de algumas regiões chapadenses também fez parte daquele propósito de registro cultural, pois a língua de um povo, sua prosódia, seu léxico e sua sintaxe são patrimônios culturais desse povo.

Para esse livro, eu me propus o desafio de mergulhar na psicologia do protagonista, que também é o narrador da história, e especular como ele poderia externalizar suas questões psíquicas, emocionais, sentimentais com o léxico e sintaxe que ele emprega em sua vida.

Não considero que tenha havido inspiração em outros autores, nesse sentido. Mas que dois autores me auxiliaram a sentir menor receio em adotar essa linguagem, pois já haviam feito antes e, portanto, eu não estaria realizando nada inédito, o que me pareceria demasiado ousado para um primeiro romance. Refiro-me ao Marcelino Freire, com seu “Contos Negreiros”, e ao Geovani Martins, com seu “O Sol na Cabeça”.

Aqui Vale: Como autor brasileiro, como você enxerga esse cenário no país, visto que o número de leitores tem diminuído cada vez mais?

Pablo Casella: Algumas pesquisas recentes têm mostrado que não está acontecendo uma diminuição no número de leitores do país. Suspeito que alguns fenômenos têm contribuído para essa percepção. O primeiro fenômeno que me chama a atenção é que o brasileiro tem lido predominantemente literatura feita fora do país. A lista dos livros mais vendidos do Brasil, há décadas, é dominada por traduções de títulos vindos de outros países. Esse fato traz essa sensação, correta, de que autores nacionais não conseguem viver dignamente apenas de seus livros. Um segundo fenômeno notável é a tendência dos livros mais recentes terem menor número de páginas, um provável reflexo na alegada diminuição da capacidade de concentração das gerações mais recentes. Um fenômeno contraditório a esse discurso é o fato de termos tantos autores, tantos títulos e tantas editoras publicando tantas obras constantemente. Independente de tudo isso, é um fato que o país tem poucos leitores de literatura. Infelizmente, esse fato não me surpreende quando olho ao redor e percebo vastas multidões de pessoas saindo das escolas com um expressivo analfabetismo funcional e pela ainda mais vasta multidão de pessoas que compões nossa sociedade desesperada pela garantida da mera sobrevivência fisiológica. Alinhando-me ao verso da música Comida, dos Titãs, nosso quase hino nacional, “A gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte”. Humanos, desde tempos imemoriais, muitos milênios atrás, lançavam-se para atividades que transcendem o mero atendimento de nossas necessidades fisiológicas. É intrínseco de nossa espécie que busquemos significados mais transcendentes para nossa existência. Uma flauta de 35 mil anos atrás, esculpida em um osso de abutre, é um vestígio incontornável de que a necessidade humana pela arte é praticamente um atributo da espécie. Nosso país, cujo nascimento, com a invasão europeia dos territórios indígenas, se deu como um mero experimento econômico, antes de ser uma sociedade, experimento pautado em latifúndios escravagistas exportadores de commodities. E a terrível constatação: as bases de sustentação desse experimento têm prevalecido por esses cinco séculos. Mesmo após o fim oficial da escravatura, os mecanismos ideológicos que alicerçavam essa chaga histórica permanecem entre nós, agora, basta vermos com honestidade qualquer estatística que envolva a parcela preta do país. Mesmo após o fim das sesmarias, grandes mães do latifúndio nacional, ainda hoje convivemos com uma desigualdade fundiária desumana e indefensável sob quaisquer aspectos. Mesmo sabendo, há décadas, que a centralidade em exportação de bens primários não agrega valor ao país, tais são os produtos que nos orgulham por turbinarem nosso PIB e tornarem nossa balança comercial positiva – a pergunta fundamental é: positiva para quem?
Nosso país, historicamente, nunca se interessou de verdade em ser uma sociedade voltada para o bem estar de todos os seus indivíduos. Muito pelo contrário, temos servido por séculos aos mesmos senhores, detentores dos reais poderes, e muitos de nós, em especial a classe média, temos sido versões contemporâneas dos capatazes coloniais, responsáveis pela opressão da classe mais subalternizada, pela promessa não feita de uma improvável ascensão social como recompensa. Em uma tal sociedade, não é nenhuma surpresa que não tenhamos escolas devotadas para a formação de pessoas, de humanos, mais do que de mão de obra para o mercado de trabalho, mais do que operadores de um sistema mercadológico perverso, cujos novos integrantes, geração após geração, saem dos tantos anos de massacre escolar com ínfimo conhecimento conteudista e praticamente nenhum incremento em habilidades sociais, psíquicas e emocionais. Que nossas escolas formem massivamente pessoas com quase nenhuma capacidade de interpretação de textos e, enfim, quase nenhum interesse ou apreço pela leitura de literatura.

Frente a toda essa azia civilizatória, enxergo a atuação de autores, artistas em geral, e ativistas como a mais poderosa ferramenta para que possamos fazer ruir os robustos pilares desse modelo monstruoso de sociedade.

Aqui Vale: Você trabalha no Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, onde, de 2002 a 2022, fez parte da equipe gestora do Parque Nacional da Chapada Diamantina, na Bahia. Atualmente está trabalhando em qual área? A nossa região do Vale do Paraíba também tem muitas queimadas. Taubaté teve um aumento no número de queimadas em junho de 2024 em relação ao ano passado, como as pessoas podem se conscientizar sobre os problemas das queimadas?

Pablo Casella: Atualmente estou no escritório do ICMBio de Ilhéus/BA, trabalhando principalmente no Parque Nacional da Serra das Lontras. Um novo bioma e novos desafios profissionais. Felizmente, até o momento, ao menos sem o grave problema dos incêndios florestais porque a região do Sul da Bahia ainda é muito úmida e com alguns importantes fragmentos de florestas.

Como disse um professor da graduação, a história do Vale do Paraíba se resume assim: “primeiro, era matagal; depois, cafezal; na sequência, capinzal; para, enfim, cupinzal”. Essa simplória quadrinha é bastante informativa e encerra a complexidade ambiental da região. Ela nos conta da perda absurda da biodiversidade, resume os ciclos econômicos (novamente, latifúndios exportadores de commodities que enriqueceram apenas uma parcela ínfima da sociedade, sobre o sofrimento de um número avassalador de pessoas subalternizadas) e culmina com uma lição hermética sobre o fim de alguns serviços ecossistêmicos. Estes são os riscos, em última instância, que a humanidade corre com nossas ações transformadoras do planeta. Essa frase também aponta, indiretamente, para um momento bem atual, de maior aridez da região. Esse cenário, conjugado com temperaturas médias mais altas e com o dado de que o Vale do Paraíba é das regiões do país com maior índice de descargas elétricas por raios, parece uma receita infalível para desastres sob a forma de incêndios florestais. E perceba que eu nem mencionei o fator cultural, que ainda mantem o uso de fogo como ferramenta agrícola, mesmo no eixo mais rico e de economia mais pujante do país.

Não gostaria, em hipótese alguma, de correr o risco, pequeno que seja, de deixar uma mensagem de prevenção a incêndios que fale apenas com um elo mais fraco e menos significativo dessa grande corrente do problema. Não sou adepto de que devemos enfrentar problemas que existem em escala regional, por exemplo, com apelos para mudanças comportamentais de indivíduos. Não. Para enfrentarmos problemas de grandes escalas, precisamos de soluções de grandes escalas. Traduzindo em miúdos, precisamos de políticas públicas. Claro, políticas públicas, em nosso país, só existem quando algum interesse social existe. Portanto, só podemos sonhar com políticas públicas estaduais, municipais até, voltadas para o imenso problema dos incêndios florestais, quando essa questão for relevante para a própria sociedade. Então, parece que a resposta passa por isso, por fazer do assunto um assunto, torna-lo conhecido, criar a pauta. O Vale do Paraíba está significativamente desprovido de um sistema capilarizado e competente para enfrentar os incêndios florestais. Em se tratando de incêndios florestais, historicamente, no país, precisamos de organizações sociais locais, capacitadas e equipadas para respostas rápidas. Isso se chama ‘brigadas voluntárias’. No mundo todo isso acontece e funciona bem. Não é possível esperar que corpos de bombeiros militares consigam resolver esse problema sozinhos. Em geral, precisa-se de muitas mais brigadas voluntárias do que de bombeiros, mas todas as instituições serão necessárias e úteis para o enfrentamento de um grande incêndio, se ele ocorrer.

Para não ficar apenas em propostas de respostas quando um incêndio ocorre, vamos pensar no que poderíamos fazer para evitar a ocorrência de grandes incêndios. Bem, um bom exercício é a observação da Natureza, aprender com a inteligência da Natureza. Em que tipo de ecossistemas não vemos grandes incêndios? E que havia em profusão no Vale do Paraíba? Simples, em ecossistemas florestais. Estamos falando, afinal, de uma região dentro da área de ocorrência do bioma Mata Atlântica, formado, dentre outras vegetações, por florestas úmidas, abundantes, com muitas árvores e plantas por hectare. Uma política pública que incentive, verdadeiramente, um retorno da região ao seu aspecto original, mais florestal, seria uma solução para inúmeros problemas, dentre eles para os incêndios. Mas também para a geração de mais emprego e renda, pois sistemas produtivos florestais ou agroflorestais empregam muito mais mão-de-obra por hectare do que os sistemas convencionais. Produziria mais segurança alimentar, pois haveria diversidade de produtos e sem agrotóxicos. Produziria mais serviços ecossistêmicos, em especial a água (lembremos da origem do nome da Mantiqueira, ‘chuva que goteja’ ou ‘serra que chora’, pela abundância de água que outrora a região produziu), mas também ajudaria a melhorar o famoso e abafado clima das cidades valeparaibanas. E essas políticas públicas poderiam fortalecer sistemas produtivos familiares, mais do que empresariais, cujo lucro, muitas vezes, se evade da região, contribuindo pouco com a economia local.

Aqui Vale: Tem planos de escrever outros livros? Algum da nossa região?

Pablo Casella: Sim, há alguns projetos em mente. Tenho pensado em abordar, literariamente, questões como o potencial desalento dos jovens perante esse mundo em frangalhos. Tentar contribuir, de alguma forma, com um incentivo para que os jovens enxerguem sentido em querer, buscar, uma melhoria do mundo. Por mais que as gerações anteriores a eles, nós inclusive, tenhamos feito uma imensa destruição de tantos pilares de sustentação da vida na Terra.

A ambientação ainda não foi definida, mas meus primeiros ensaios têm me levado a cenários que, inegavelmente, podem ter relação com a Guaratinguetá da minha infância.

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