Estupro de Crianças e Adolescentes: é preciso transformar essa dura realidade
Essa semana, o Portal Aqui Vale noticiou um caso de estupro que teria sido cometido por um homem de 42 anos contra sua filha de…
Essa semana, o Portal Aqui Vale noticiou um caso de estupro que teria sido cometido por um homem de 42 anos contra sua filha de 8 anos, em Taubaté, no Vale do Paraíba. Ele teria sido flagrado pela mãe da menina em plena ação criminosa, destacou a notícia. A investigação, pelo visto, está no início.
A criança e o adolescente não são objetos de direito do mundo adulto, mas sim sujeitos direitos, titulares dos próprios direitos, e a Constituição Federal alinha o Estado, a Sociedade e a Família como os entes responsáveis pela concretização desses direitos.
Os direitos fundamentais infantojuvenis são aqueles elencados no caput, do artigo 227 da Carta da República, devem ser assegurados pelos entes subordinados com absoluta prioridade. E mais, à família, à sociedade e ao Estado cabe colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, assim, não se espera uma postura reativa, mas sim proativa.
Desse magno rol de direitos, destacaremos, por oportuno, a proteção do direito à dignidade e do direito ao respeito, especialmente no que diz respeito a tutela da dignidade sexual da criança e do adolescente.
O direito ao respeito é definido no art. 17 da Lei 8.069/90 (ECA) e consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais.
Ao lado do respeito está o direito à dignidade, de difícil definição. Por via obliqua, a lei disciplina o direito em testilha, ao determinar que é dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor.
Pode-se dizer, segundo Abbagnano, por “[…] princípio da dignidade humana entende-se a exigência enunciada por Kant como segunda fórmula do imperativo categórico: ‘age de tal forma que trates a humanidade, tanto na sua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre também como um fim e nunca unicamente com um meio’”.
Portanto, tratar a criança e o adolescente como objetos e não como sujeitos é retirar-lhes a dignidade de pessoa humana. O ser humano, qualquer que seja sua idade é titular de sua própria dignidade e, portanto, como corolário, merece o respeito desta condição que lhe é peculiar e única, de ser humano.
Nada desumaniza mais do que a ofensa a dignidade sexual da pessoa humana. Nada retira mais a condição de pessoa humana do que os crimes contra a dignidade sexual, porque são expressão de poder de uma pessoa que nulifica a outra pessoa, tornando-a um mero objeto de sua intervenção egoísta, cruel e opressora.
O cenário piora nas situações em que a vítima é uma pessoa vulnerável, incapaz que defender-se por ela mesma, frágil, como por exemplo as crianças, os adolescentes menores de 14 anos e a pessoa com deficiência sem discernimento para o exercício dos direitos sexuais e reprodutivos.
Essa pessoa vulnerável que, por força da lei, merece uma proteção diferenciada e prioritária, deveria ser especialmente tutelada e não usurpada pela sua fragilidade. Em razão disso, a reprovabilidade social da conduta do agressor é altamente qualificada, são crimes hediondos com máximo potencial ofensivo.
Mas, como tudo sempre pode piorar, chega-se ao fundo do poço ao constatar que mais da metade dos crimes sexuais contra a pessoa vulnerável é praticado contra meninas menores de 12 anos, e os autores dos crimes são seus pais, padrastos e outros parentes do sexo masculino, ou seja, seus familiares no ambiente de sua casa.
Mas não é só. Duríssimo constatar que esses crimes acontecem na zona rural, na zona urbana, nas grandes e pequenas cidades, nos estratos econômicos e sociais diversos. Em todos esses cenários os casos não estão diminuindo, estão aumentando, e ainda há uma cifra oculta de mais de cinquenta por certo dos casos.
Na realidade, qualquer lugar em que pode chegar o machismo estrutural esse crime está presente e, tristemente se verifica, que esse mal é democrático. Na gigantesca maioria das vezes, é o crime do homem adulto contra a mulher criança, dentro dos ambientes em que a vítima deveria estar mais protegida – em casa, no clube, na escola e até nas igrejas. Importa registrar que, com menos incidência e igual violência, a vítima também é o menino criança e a pessoa com deficiência.
São crimes cometidos na clandestinidade. Como se pode imaginar, muitos deles jamais chegarão às autoridades e, outras vezes, demoram muito a tornarem-se conhecidos, afinal o agressor tem poder sobre a vítima e além da violência sexual também a oprime e retira-lhe a liberdade.
Para os casos que chegam ao conhecimento do Sistema de Garantias e de Justiça há instrumentos modernos de proteção, não apenas os crimes previstos no Código Penal e no Estatuto da Criança e do Adolescente, mas também as normas processuais, como o depoimento especial e as medidas protetivas, que buscam evitar a revitimização e aprimoram a qualidade da prestação jurisdicional, com processos justos e efetivos.
Mas como fazer com a cifra oculta, a qual representa mais da metade dos casos, que não revelados ou denunciados, em que a criança segue sofrendo o abuso sexual em silêncio e, muito depois, são notados em consultas psiquiátricas? Essas vítimas invisíveis, gritando para ninguém escutar, são silenciadas pela indiferença do Estado, da sociedade e até da família. Na atuação profissional, presenciamos casos em que a própria mãe era conivente – ou impotente – com o pai agressor.
E mais! Um simples levantamento nas estatísticas da Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo revela o registro de uma média aproximada de 31 boletins de ocorrência por dia do crime de estupro de vulnerável no Estado, e sabemos que isso representa menos da metade dos casos. Portanto, o que fazer diante dessa pandemia? Sentar e esperar o próximo estupro?
Enfim, a certeza da cifra oculta e dos casos futuros precisa romper a indiferença social e o imobilismo das instituições. Caso contrário, resta decretar a falência do pacto social, que não pode conviver com uma multidão de crianças vitimizadas debaixo do próprio nariz.
Essas crianças saem dos ambientes opressores de suas casas e vão todos os dias para as escolas – municipais, estaduais e particulares –, lá convivem com seus professores e demais educadores, outras crianças, adolescentes e jovens, com todas as dificuldades que se pode imaginar, de aprendizagem e interação social.
Será que os profissionais da rede de proteção que lidam com esses casos de crimes sexuais na área da segurança, justiça, saúde e social (policiais, juízes, promotores de justiça, servidores do MP, equipes técnicas do judiciário, servidores do CREAS e da saúde, conselheiros tutelares, educadores do acolhimento) não precisariam conversar mais com a comunidade escolar onde essas crianças estão todos os dias?
Esses profissionais de áreas diversas convivem com esse horroroso cenário e tem como ponto comum a constatação de sua própria incompletude para sozinhos, mudar essa realidade social. Convivem com suas próprias insuficiências e isso certamente é um desalento para aqueles que mantém no coração acesa a chama do compromisso firmado na Constituição Federal.
Seria muito oportuno que se formasse um grande grupo de pessoas que pudessem somar seus saberes e encontrar soluções estruturais, para esse problema que é certamente complexo e estrutural. Aí sim haveria grandes chances de uma empreitada de sucesso, com potencial transformador da realidade.
Imagine se a professora na sala de aula também integrasse esse grupo e trocasse informação e compartilhasse seus saberes. Na sala de aula, em contato direto com as crianças, motivada, capacitada e integrada à rede de proteção, a educadora ajudaria estabelecer um fluxo de atendimento para escoar suas suspeitas (art. 56, inciso I e 245, ambos do ECA), certamente veríamos um incremento no combate da cifra oculta, ou seja, menos crianças sofrendo e mais agressores identificados e punidos.
No passo adiante, com os ambientes mais qualificados, haveríamos de alcançar as famílias e os locais onde esses crimes têm acontecido, o objetivo é evitar o estupro da criança, quem sabe abrir os olhos da mãe para aquele homem em sua casa, que está prestes a violentar sua filha e lhe dar meios para enfrentar essa situação.
Para ser mais claro, nesses casos, a transformação da realidade consiste em desintegrar essa cifra oculta e atuar nas famílias e nos ambientes onde esse crime cresce, para EVITAR sua ocorrência. Ser o bombeiro que previne o incêndio e não apenas o apaga e colhe o rescaldo, porque aqui é a alma humana que incendeia e adoece.
E não é só a alma da vítima, mas a alma de todos, pois toda a sociedade é ferida quando uma criança é estuprada.
Um fórum permanente de proteção da dignidade sexual da pessoa vulnerável, que se reunisse periodicamente e ajuntasse instituições da justiça, saúde, educação, cultura e a sociedade/comunidade, constituindo-se numa fábrica de ideias e ideais, é urgente!!!
Há notícias de Promotores de Justiça que articulam a formação desses grupos multi e interdisciplinares, inclusive, eles mesmos de áreas diferentes – criminal, família, infância e juventude e pessoa com deficiência – para qualificar o trabalho de proteção da dignidade sexual da pessoa vulnerável, com ótimos resultados no aprimoramento do combate a esse crime, ataque da cifra oculta e conscientização dos grupos familiares.
Uma estrutura como essa em cada município é um alento, um grande instrumento de escuta e de fala transformadora, apta a salvar vidas e resgatar uma forma de trabalho democrática e interdisciplinar, adequada a obter resultados mais concretos e orientar as ações das autoridades para que atuem de modo mais resolutivo.
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